ERA UMA VEZ UM BICHO-PAPÃO


Dado o avanço registado ao nível da produção automóvel, muitos de nós podemos dizer que, tirando as indesejáveis mas necessárias intervenções de rotina e demais revisões programadas, as nossas quatro rodas raramente vão à oficina. Mas muitos outros já viram o seu investimento de uma vida ser chamado de urgência à oficina da marca porque, de repente, se identificou um qualquer potencial problema, que poderá afectar o bom funcionamento do seu veículo e, no limite, a sua segurança e a daqueles que transporta a bordo.

Falo do “recall”, o aterrador bicho-papão da indústria automóvel, num termo de apenas seis letrinhas – sendo uma delas repetida – que, quando vem à baila, provoca um tsunami à escala global, numa ‘onda’ de proporções por vezes gigantescas, que atinge mais ou menos continentes dependendo de onde a viatura em causa tenha sido vendida. Ele pode ainda ser mais ou menos devastador consoante o tema seja bem explorado (poucas vezes, infelizmente muito poucas…) ou mais atabalhoadamente (na grande maioria dos casos) através dos órgãos da imprensa (seja ela escrita ou televisionada).


Os ‘recalls’ mais recentes, de vários milhões de viaturas à escala global, afectaram marcas outrora impensáveis de se verem atingidas por tão aflitiva desgraça, como sejam alguns construtores japoneses ou mesmo algumas marcas de automóveis de luxo, em que as tecnologias de produção são tão avançadas que quase não se percebe como tal ‘micróbio’ se pôde instalar! Pois é… quase!

Quando os automóveis eram feitos 100% ‘em casa’, sem ingerências externas ou fornecimentos de terceiros, o processo era bastante mais controlado, se bem que não assegurado na totalidade. Nunca o foi! Mas pronto… uma vez identificado um erro ou um defeito, a coisa tinha menos impacto e resolvia-se de um modo relativamente mais fácil. A partir da altura em que os fornecedores de peças começaram a ser comuns à grande maioria das marcas, decorrentes das chamadas economias de escala que a indústria automóvel adopta (ver texto anterior do Trendy Wheels – HOJE CASO CONTIGO, AMANHÃ LOGO SE VÊ, os tais ‘bugs’ começaram a surgir, até mesmo entre os supostos inatingíveis!

O caso mais recente remonta a Abril último, quando ocorreu um dos maiores ‘recalls’ conjuntos de sempre, afectando vários construtores e nada menos do que 3,4 milhões de veículos em todo o planeta, entre os quais cerca de 20.000 unidades no nosso país. Tudo porque se identificaram alguns casos a nível internacional, de automóveis produzidos entre 2000 e 2004 e equipados com airbags fornecidos pela empresa Takata Corporation, integrados num lote de peças potencialmente com defeito. Não surpreende, portanto, a dimensão desta onda, numa maré cada vez mais frequente e mais abrangente, implicando perdas astronómicas para as marcas envolvidas.


Aliás, só para se ter uma ideia, ao longo dos últimos três anos (de 2010 até à presente data) os construtores automóveis já chamaram às oficinas mais de 24.000.000 de viaturas! Sim, leu bem, são 24 milhões de automóveis, integrados em ‘recalls’ onde se alertam os proprietários para o potencial defeito de uma determinada peça, não se querendo correr o risco de algo falhar e, eventualmente, os estragos se tornem muito para além de chapa batida, pondo em risco as vidas de quem segue a bordo. 

Por isso, se e quando receber uma carta em casa, enviada pelo representante nacional da marca do modelo que comprou, antes de se atirar ao ar e começar a falar mal de Deus e do Mundo, pense que o que tem parado à porta é, antes de mais, uma máquina. Claro que é uma máquina demasiado cara, pois por cá não se compra um automóvel novo por menos de 10.000 euros e que, em casos mais extremos, afecta outras de várias dezenas ou centenas de milhar de euros, que teoricamente deveriam funcionar como um relógio suíço. Só que, infelizmente, não é bem assim…

Lembre-se, antes de mais, que a sua marca está também a zelar pelos seus interesses e atente no pormenor que o seu automóvel PODERÁ estar afectado por esse problema. Não há certeza de que esteja. Há uma hipótese porque a peça afectada é do mesmo lote das identificadas como estando, pelo que se torna POTENCIALMENTE defeituosa e, jogando pelo seguro, há que ir à oficina da marca e combinar a intervenção. “Ah, ya… que trabalheira…”, “vai-me complicar com a agenda…”, “agora tenho de ir de propósito lá…”, “gastei eu X mil euros e tenho um carro defeituoso…”. Tem carradas de razão, mas é a sua vida e a dos que estão a bordo que está em jogo.

Ah sim… e não se alarme pelo que lê em determinados jornais ou ouve em alguns canais de televisão, pois na grande maioria das vezes o tema é – audiências ‘oblige’… – explorado de modo a dar ‘sangue’. Quanto mais melhor! Não interessa se o modelo em questão é um sucesso de vendas ou que integra as mais avançadas tecnologias e inúmeras soluções de segurança a bordo, que lhe garantem conceituados prémios internacionais e que até têm sido um papel preponderante em alguns acidentes. Nada disso… o que interessa, para alguns, é o turbilhão de abanões que provoca, ao anunciar-se à boca cheia, às vezes mesmo sem se estar em posse dos números oficiais, que X milhões de viaturas “ESTÃO” afectadas com o problema Y ou Z. Não é “ESTÃO”… é “PODERÃO ESTAR”! É tudo uma questão de conjugação dos tempos verbais na cada vez mais estraçalhada língua de Camões.

Assim, se receber a dita da carta, combine o mais rapidamente possível com a sua marca de eleição o quando e onde e siga com a vida em frente. É bem melhor do que receber um telefonema a dizer que houve um acidente, eventualmente com vidas perdidas…!

Cumprimentos distribuídos irmãmente e até breve!

José Pinheiro

Notas: 1) As opiniões acima expressas são minhas, decorrentes da experiência no sector e de pesquisa de várias fontes. Os restantes membros deste ‘blog’ não têm obrigatoriedade de partilhar dos mesmos pontos de vista; 2) Direitos reservados das entidades respectivas aos ‘links’ e imagens utilizados neste texto, conforme expresso.

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