A Sociedade Sentada - Parte 2


Vou começar este texto com uma sugestão, que pode simultaneamente, ser educativa e razão para umas boas gargalhadas: Quando estiver numa estação de comboio, metro, paragem de autocarro, ou num qualquer sítio onde haja bastantes pessoas paradas e em pé, observe-as com atenção (pode desviar o olhar se a coisa se estiver a tornar… estranha). Repare na altura de cada ombro, sobretudo naquele que leva a mala ou a mochila; repare se a cabeça está muito para a frente, na zona do pé que toca primeiro no chão quando anda, se tem as pernas arqueadas como o Charlie Chaplin. Com certeza encontrará muitas características com as quais se divertir assim que se aperceber delas.

Figura 1 Observe a postura dos outros. Evite o que vir de errado.
Mas, obviamente, a minha intenção aqui não passa por querer promover no leitor a vontade de gozar com pobres desconhecidos. Deixo isso para um Bruno Nogueira, Salvador Martinha ou outros que tais. 

E se lhe disser que em boa parte desses casos, essas posturas são culpa da própria pessoa? Do seu descuido mas, também claro, desconhecimento? Tenho a sua atenção? Bom, admito que talvez não surpreenderei muito o leitor com tal facto. Mas, caso tenha tido a oportunidade de ler a Parte I deste “A Sociedade Sentada”, estará com certeza já a supor que há um grande número de coisas a sucederem no nosso corpo, de um ponto de vista mais mecânico, quando nos mantemos demasiado tempo sentados ou simplesmente inactivos; o que contribui muitíssimo para aquelas posturas desviantes do ideal. E essas sim, podem ser surpreendentes.

Figura 2 Músculo Psoas-Ilíaco
Desde logo, os fenómenos mais fáceis de constatar, são a atrofia e o encurtamento musculares. Quando se procura explicar uma alteração da forma ou da função de um músculo, órgão, ou a perda ou o aperfeiçoamento de uma habilidade humana, é frequente aplicar-se a expressão anglo-saxónica “use it or lose it” – “utiliza-a ou perde-a”. A atrofia e encurtamento musculares, são exemplos paradigmáticos desta máxima. A posição de sentado, inclui uma flexão da anca a cerca de 90° que deixa os músculos Quadricípite e Psoas-Ilíaco numa posição muito encolhida o que, aliado às muito poucas e fracas contracções musculares, conduz à diminuição dos seus comprimentos, elasticidade, flexibilidade e massa muscular. Isto é particularmente pernicioso no (carismáticamente chamado) Psoas-Ilíaco porque possui fortes inserções na vertebras lombares.

Figura 3 Músculo Psoas-Ilíaco encurtado
Outras estruturas particularmente afectadas com a imobilidade e uma postura mantida ao longo do tempo, são os Discos Intervertebrais. Estruturas com 70 a 90% de água na sua constituição, perdem grande parte da mesma ao longo do dia e a manutenção de determinada posição por muito tempo, intensifica a saída de água do disco nos locais que vão estando sobrecarregados. Somando ao encurtamento daquele tal músculo com estranho nome, temos um cocktail quase perfeito de predisposição à lesão de uma estrutura óssea, muscular, ligamentar ou nervosa na região lombar.



Figura 4 O efeito de quatro posturas no disco intervertebral medido entre a 3ª e 4ª vértebras lombares.
 A pressão na posição de pé representa 100%.
Figura 5 Músculo Transverso 
do Abdómen. Tecido conjunctivo 
a branco, tecido muscular 
propriamente dito a vermelho.
E digo quase, porque existe um terceiro interveniente neste “trio maravilha”. É um músculo, e chama-se Transverso do Abdómen. Sendo uma musculatura profunda do abdómen, não deve ser confundido com o músculo “da barriga” (Grande Recto do Abdómen) que todos gostariam de ter mais, ou menos, bem delineado qual “six pack”. O Transverso tem um papel fundamental na estabilização da coluna e do tronco em geral. Contrai (não conscientemente) uns instantes antes de qualquer movimento que façamos para manter ou aumentar ligeiramente a pressão intra-abdominal, estabilizando a coluna, e está frequente afectado na sua função. Porquê? Corpo muito tempo imóvel, ou com pouco movimento. Se na maior parte do tempo, o corpo estiver quieto, apoiado e estabilizado numa cadeira ou sofá, o Transverso não é solicitado para contrair dado que esse trabalho esta a ser feito pela cadeira ou sofá. E como era mesmo? Use it or lose it, não é verdade?

Outro facto importante prende-se com a respiração. A quantidade de respiração, por assim dizer. A falta de actividade, a curto e médio prazo vai conduzir a uma diminuição dos volumes respiratórios, isto é, a quantidade de ar que se inspira e expira. Isto acontece porque, não havendo necessidade de respirar grandes quantidades de ar (i.e. durante a realização de exercício físico), o pequeno e pouco movimento nas articulações costo-vertebrais (entre costelas e vertebras) suscita um aumento da rigidez nas mesmas, acabando a longo prazo, por diminuir a amplitude de movimento que fazem. 

Além disto, ocorre também uma atrofia da musculatura respiratória, algo que influencia novamente a coluna agora por via do músculo Diafragma, outra peça chave no puzzle das dores de costas, dado que através da sua contracção aquando da inspiração, faz aumentar a pressão intra-abdominal uma pouco à semelhança do músculo Transverso do Abdómen, estabilizando o tronco.

Figura 6 Exemplo simplificado 
de articulação com membrana 
sinovial
E se quiser manter as suas articulações saudáveis, está na hora de se mexer, mesmo que no sitío em que está sentado. A lubrificação e nutrição das cartilagens só ocorre por estimulação de uma estrutura chamada Membrana Sinovial. E o que é que isto significa? A membrana é uma estrutura que circunda as articulações e que produz um líquido (sinovial) lubrificante e com os compostos necessários à preservação das articulações. A produção e absorção desse “WD-40 natural” dá-se apenas se a articulação se mover, esticando e dobrando a dita membrana. O franco retorno venoso é outro ponto importante. As varizes, a título de exemplo, não surgem somente nas pernas de quem passa muito tempo em pé, mas também muito tempo sentado. Lembre-se, a gravidade puxa tudo para baixo, o sangue não é excepção, e tenderá a acumular-se no fim do corpo. É por isso que quando sofre uma entorse um dos passos da recuperação passa por manter o pé elevado, de forma a facilitar a movimentação do sangue e fluídos inflamatórios.

Por certo também, já ouviu e conhece alguém com “dor ciática”. Então levante-se. Uma das causas da mesma (apesar de, com esta origem, não ser clinicamente correcto chamar dor ciática) prende-se com a irritação ou encurtamento de um músculo chamado Piramidal da Bacia. Este pequeno músculo localizado profundamente na zona glútea está atrás do nervo ciático, havendo uma pequena percentagem de pessoas nas quais o nervo atravessa mesmo o músculo. Passar muito tempo sentado, como que esmaga o Piramidal, além da posição das pernas adoptada pela maioria de nós quando sentados, facilitar o seu encurtamento. Isto conduz à diminuição do seu comprimento, ao inchaço pela inflamação, e até ao espasmo, bloqueando o movimento do nervo e/ou comprimindo-o, produzindo-se assim a sintomatologia habitual de dor ao longo da face posterior da coxa. 

É um verdadeiro manancial de problemas, o que advém do estilo laboral contemporâneo independentemente do sector, seja na indústria, nos serviços, no desporto, na agricultura ou outro qualquer. Mas também da forma como desfrutamos do nosso tempo livre. Falamos de hábitos, no fim de contas. Os aqui problemas aqui citados são apenas alguns e mais comuns. E movermo-nos tem de ser o mote para o dia-a-dia. A par do sedentarismo e da inactividade física, as posturas mantidas e movimentos repetitivos são talvez dos maiores males dos tempos em que vivemos, no que à nossa condição física diz respeito. Só que, saúde no futuro passa pela saúde no presente.

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