A Sociedade Sentada – Parte I


Façamos um exercício mental. Recorde cada sitio onde esteve hoje - dos transportes, ao local de trabalho, àquele restaurante tão trendy que foi experimentar. Agora, tente lembrar-se de quanto tempo passou sentado nesses espaços. Bastante, não? Não se choque. Facto: praticamente todos os locais a que vamos, estão formatados para nos "receber" tendo o conforto como prioridade – do carro à sucursal do banco – e por conseguinte, oferecer-nos um lugar onde nos sentarmos.

No fundo, não é totalmente culpa dos hábitos ou opções de cada um. É um paradigma instalado que decorre de uma época em que a sociedade transitou de um estilo de vida activo, e de agricultura de subsistência para outro, baseado na tecnologia e trabalho, em grande parte, de escritório, ou simplesmente sentado. Esta “inactividade física” – por oposição ao conceito de “actividade física” que representa todo o movimento que fazemos (andar, subir escadas, levar o lixo) e que é também diferente de “exercício físico” (ginásio, correr, etc.) – começa agora a ser focada pela ciência. 

Fixe esta máxima e perceberá a lógica de tudo o que vou explicar a seguir: O corpo humano, está concebido para se mover.

Há muito que se fala das consequências que o sedentarismo acarreta – do aumento da predisposição a problemas cardíacos, acidente vascular cerebral, diabetes ou uma maior incidência de arterioesclerose, entre inúmeros outros – algo que tipicamente tentamos combater com exercício físico, seja ele ginásio ou um jogo de uma qualquer modalidade com amigos. Contudo, a evidência científica começa agora a mostrar que sedentarismo e passar muito tempo sentado não são a mesma coisa.

Num recente relatório australiano sobre diabetes (AusDiab), os investigadores avaliaram a relação entre o tempo passado a ver televisão e marcadores de risco cardio-metabólico (glucose sanguínea, perímetro abdominal, pressão arterial, entre outros) em cerca de 11 mil pessoas (1). Os resultados foram perturbadores, revelando alterações no metabolismo da glucose (2) bem como a presença de sídrome metabólico (3) (um conjunto de factores de risco cardiovascular e diabetes tipo 2), sobretudo nos idividuos que reportaram mais de 4h por dia de televisão.

E agora, o inesperado: de seguida, os investigadores focaram-se naqueles individuos que relataram fazer no minimo 150 minutos de exercício físico semanalmente (o valor recomendado por diversas guidelines internacionais, incluindo a maior referência, ACSM). Nestes individuos, nos quais muitos de nós se reverão e, que não rotularíamos de sendentários, a mesma relação negativa com os riscos metabólicos manteve-se. Isto indícia que fazer exercício por si só, não chega!

Outros estudos ainda identificaram que ver televisão e estar ao computador por periodos prolongados de tempo pode mais do que duplicar o risco de síndrome metabólico (4, 5, 6), e a sua prevalência sobe 26% nas mulheres por cada hora que passarem por dia, inactivas a ver televisão (4).

E mais investigadores já mostraram também o aumento do risco de doença cardiovascular por, específica e exclusivamente, as pessoas em estudo passarem muito tempo sentadas, seja por força do seu trabalho ou não (7,8,9,10). Além do mais, sabe-se também que após a perda de peso, a sua manutenção está associada ao evitamento de comportamentos sedentários, independentemente da prática de exercicio fisico (11).

Todos estes dados vêm mostrar que a inactividade muscular (diferente de não fazer exercício) vem com alto custo para a saúde.

Mas como se processa tudo isto?

Lembra-se do mote que lhe dei no início? O corpo humano, está concebido para se mover. É disso que se trata.

O corpo humano consome energia para 3 propósitos: o metabolismo basal, que basicamente representa a energia consumida para manter o corpo simplesmente ligado; a termogénese induzida pela dieta, grosso modo a energia utilizada para a digestão e finalmente, a termogénese de actividade. Esta última, representa a energia que utilizamos para nos movimentarmos e divide-se naquela que consumimos quando fazemos exercício puro e duro, e noutra, particularmente importante chamada NEAT (do acrónimo inglês Non-Exercise Activity Thermogenesis). Esta é a energia usada para a actividade fisica – andar, sacudir um pano, vestir-mo-nos, etc.

Figura 1. Weekly Activity Exercise Expenditure (Gasto Energético Semanal) – 
Comparação do gasto energético da Actividade Física + Exercício Físico.
E é neste pormenor que tudo falha. Se pensarmos, a maior parte do nosso tempo é passado em actividade física – ou não, daí o problema em discussão – e não em exercício físico. Será que 1 ou 2 horas de exercício representa o mesmo gasto energético que as cerca de 14, 15 ou 16h que passamos em movimento no dia-a-dia? Tal como o relatório australiano mostrou, não! Em média, num dia, ingerimos nunca menos de 2100 kcal (o habitual valor recomendado, neste caso para um homem). Sabe-se que em média, os trabalhadores que passam a sua jornada diária maioritariamente em pé – lojistas, baristas, carteiros, carpinteiros, etc. – gastam entre ~1400 kcal a ~2300 kcal (12), enquanto nas profissões “sentadas” – motoristas, operadores de call-center, etc. – os valores descem para ~700 até umas incrívelmente baixas 300 kcal (13). Para estes últimos, são 1400 a 1800 kcal que sobram armazenadas, a maior parte sob forma de gordura. Introduzindo uma corrida de 10km, são “apenas” cerca de 700kcal subtraídas.

Figura 2. Actividade eléctrica do quadricípite.
 Picos representam contracção muscular.
Estar em pé, representa milhares de minúsculas contracções em todos os músculos do corpo de modo a que nos mantenha-mos nessa posição e equilibrados a contrariar a gravidade. Esse trabalho é feito maioritariamente por fibras musculares específicas, resistentes à óbvia fadiga inerente, existentes em todos os músculos mas maioritarimente nalguns, a que poderemos chamar “músculos posturais” para simplificar. A partir do momento em que nos sentamos ou deitamos, todo esse trabalho deixa de ser necessário, e um músculo que não trabalha, é um músculo que não consome energia. Mas infelizmente, não acaba aí.

Em qualquer mamífero, os musculos são os grandes consumidores de energia no corpo. E descobriu-se que, nos ratos (já cá faltavam), 12 horas de inactividade conduziram a uma redução de 75% (!) na capacidade de absorverem a gordura circulante. Mais, este dado estava relacionado com uma redução de 90% a 95% da actividade de uma enzima chamada Lipoproteína Lipase (LPL), precisamente nas fibras musculares resistentes à fadiga (14)

E para que serve a LPL? Entre muitas outras coisas, permite que o musculo possa absorver a gordura e a usar como combustível, além de contribuir na regulação do HDL ou “bom colestrol”. Algo que é necessário termos em grande quantidade no corpo, dado que a função deste colestrol (daí o “bom”) é a de trazer a gordura de todos os pontos do corpo, até ao figado para ser decomposto. 

Mais uma vez, o efeito pernicioso da inactividade, ao cabo de 8 horas, determinou uma diminuição de 22% na concentração de HDL (15)

Por outro lado, poder-se-ia pensar que, se a inactividade tem tão drásticos efeitos fisiológicos, então treinando conseguir-se-iam os efeitos opostos. Mais uma vez a natureza dá-nos uma tampa e a LDL só se torna ligeiramente mais activa nos ratos sujeitos a um treino extremamente intenso e em fibras musculares que não são as responsáveis por manter a postura (16)

As guidelines e a cultura do exercício físico abunda e felizmente que sim. O treino tem efeitos fantásticos no corpo e na sua longevidade. Mas começa a fazer sentido olharmos para os nossos hábitos diários e perceber que o exercício não é um “comprimido milagroso” que queimará todas as calorias em excesso. 

O conceito de sedentarismo mudou. Não o é, somente, aquele que não se exercita. As pessoas cujo dia-a-dia é passado maioritariamente sentado apesar de se exercitarem com regularidade também estão em risco, um fenómeno denominado Active Couch Potato. É necessário uma mistura entre actividade física e exercício físico. Não basta só exercício.

Figura 3 Esquema diário de um "Active Couch Potato"


A questão que se coloca é: será que ainda iremos passar mais tempo sentados no futuro? Recordo o filme Surrogates, com o Bruce Willis. A evolução tecnológica e as permanentes facilidades e comodismos que esta era moderna nos fornece são muitas e tentadoras. Porém, esta capacidade que temos para criar, costuma pender para os dois lados da balança. 

De momento existem dois problemas que não deixam soar o “alarme”: a quantidade de evidência científica sobre o assunto que só nos ultimos 10 anos começou a despontar; e a resistência à mudança típica da espécie humana, sobretudo em algo tão sensível como o conforto pessoal. Mas como a história nos tem ensinado é sempre uma questão de tempo: Benjamin Franklin, Winston Churchill, Ernest Hemingway, todos eles tinham perídos ao longo do dia em que trabalhavam propositadamente de pé. Que sirva de inspiração. 

Na Parte II, abordarei os problemas e disfunções mecânicas que decorrem da inactividade física na posição sentada. 

Na Parte III e última, aconselharei sobre como evitar e recuperar dos problemos abordados na Parte I e II.

Referências Bibliográficas
1. Healy GN, Dunstan DW, Salmon J, et al. Television time and continuous metabolic risk in physically active adults. Med Sci Sports Exerc. 2008; 40:639–645 
2. Matthews CE, Chen KY, Freedson PS, et al. Amount of time spent in sedentary behaviors in the United States, 2003–2004. Am J Epidemiol. 2008; 167:875–881 
3. Taylor HL, Klepetar E, Keys A, et al. Death rates among physically active and sedentary employees of the railroad industry. Am J Public Health Nations Health. 1962; 52:1697–1707. 
4. Dunstan DW, Salmon J, Owen N, Armstrong T, Zimmet PZ, Welborn TA, Cameron AJ, Dwyer T, Jolley D, Shaw JE; AusDiab Steering Committee: Associations of TV viewing and physical activity with the metabolic syndrome in Australian adults. Diabetologia 48:2254 –2261, 2005 
5. Bertrais S, Beyeme-Ondoua JP, Czernichow S, Galan P, Hercberg S, Oppert JM: Sedentary behaviors, physical activity, and metabolic syndrome in middle-aged French subjects. Obes Res 13:936 –944, 2005 
6. Ford ES, Kohl HW 3rd, Mokdad AH, Ajani UA: Sedentary behavior, physical activity, and the metabolic syndrome among U.S. adults. Obes Res 13:608–614, 2005 
7. Morris JN, Heady JA, Raffle PA, Roberts CG, Parks JW: Coronary heart disease and physical activity of work. Lancet 265:1053–1057, 1953 
8. Weller I, Corey P: The impact of excluding non-leisure energy expenditure on the relation between physical activity and mortality in women. Epidemiology 9:632– 635, 1998 
9. Manson JE, Greenland P, LaCroix AZ, Stefanick ML, Mouton CP, Oberman A, Perri MG, Sheps DS, Pettinger MB, Siscovick DS: Walking compared with vigorous exercise for the prevention of cardiovascular events in women. N Engl J Med 347:716 –725, 2002 
10. Paffenbarger RS Jr, Blair SN, Lee IM: A history of physical activity, cardiovascular health and longevity: the scientific contributions of Jeremy N Morris, DSc, DPH, FRCP. Int J Epidemiol 30:1184 –1192, 2001 
11. Raynor DA, Phelan S, Hill JO, Wing RR. Television viewing and long-term weight maintenance: results from the National Weight Control Registry. Obesity (Silver Spring). 2006; 14:1816–1824. 
12. Karvonen MJ, Pekkarinen M, Metsala P, Rautanen Y: Diet and sérum cholesterol of lumberjacks. Br J Nutr 15:157–163, 1961 
13. Black AE, Coward WA, Cole TJ, Prentice AM: Human energy expenditure in affluent societies: an analysis of 574 doubly-labelled water measurements. Eur J Clin Nutr 50:72–92, 1996 
14. Bey L, Akunuri N, Zhao P, et al. Patterns of global gene expression in rat skeletal muscle during unloading and low-intensity ambulatory activity. Physiol Genomics. 2003; 13:157–167 
15. Bey L, Hamilton MT. Suppression of skeletal muscle lipoprotein lipase activity during physical inactivity: a molecular reason to maintain daily low-intensity activity. J Physiol. 2003; 551(Pt 2): 673–682 
16. Hamilton MT, Etienne J, McClure WC, et al. Role of local contractile activity and muscle fiber type on LPL regulation during exercise. Am J Physiol. 1998; 275(6 Pt 1):E1016–E1022. 
17. Hamilton MT, Hamilton DG, Zderic TW. The role of low energy expenditure and sitting on obesity, metabolic syndrome, type 2 diabetes, and cardiovascular disease. Diabetes. 2007; 56:2655–2667 
18. Hamilton MT, Healy GN, Dunstan DW, Zderic TW, Owen N. Too little exercise and too muchsitting: inactivity physiology and the need for new recommendations on sedentary behavior. CurrCardiovasc Risk Rep. 2008; 2(4):292–8. 
19. Owen N, Healy GN, Matthews CE, Dunstan DW. Too much sitting: the population-health science of sedentary behavior. Exerc Sport Sci Rec. 2010; 38(3):105-113 
20. Clee SM, Zhang H, Bissada N, Miao L, Ehrenborg E, Benlian P, Shen GX, Angel A, LeBoeuf RC, Hayden MR. Relationship between lipoprotein lipase and high density lipoprotein cholesterol in mice: modulation by cholesteryl ester transfer protein and dietary status. J Lipid Res. 1997; 38(10):2079-89.

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